Skip to main content

UX Messy não é só um projeto. É uma forma de estar no design. Uma maneira de pensar que abraça o erro, celebra a diferença e questiona tudo o que nos ensinaram sobre produtividade, ordem e norma. E isso ganha ainda mais relevância quando sabemos que cerca de 10% da população vive com dislexia.

Gustavo Brado, criador do projeto UX Messy

uiux.pt: O que significa, para ti, ‘design messy’? E em que momento percebeste que o caos podia ser uma ferramenta criativa, e não um problema a resolver?

Gustavo Brado: Para mim, design messy é aceitar que a experiência humana não é linear, perfeita ou previsível — e que o design não precisa de o ser também. É confiar que o caos, quando observado com atenção, revela padrões valiosos. Percebi isso quando comecei a olhar para os meus próprios processos desorganizados, marcados pela dislexia, como uma vantagem. Vi que havia lógica no meu “caos” — e que ele me permitia ver soluções onde outros viam só ruído. O momento de viragem foi quando comecei a perceber que resolver problemas podia começar por os desarrumar ainda mais, até encontrar o fio certo.

Quando estou em fase de research, tudo à minha volta flutua — ou se decompõe em infinitas layers sobrepostas. É como se tivesse diante de mim uma visão explodida de todo o sistema, onde cada parte é fragmentada até ao mais pequeno pormenor. E é daí, desse caos organizado, que consigo retirar peças isoladas que fazem sentido para o problema em mãos.

Vista explodida peças para furadeira Bosch GSB20-2 200v
Vista explodida peças para furadeira Bosch GSB20-2 200v

Um exemplo disso é o trabalho que desenvolvo no KuantoKusta. Como não há muitos concorrentes diretos com o mesmo contexto socioeconómico e modelo de negócio em Portugal, muitas vezes procuro inspiração em produtos que, à primeira vista, parecem distantes. Skyscanner, Booking, Mercado Livre, ou até plataformas como OLX, Decathlon, Vinted, IKEA e o sistema de marcações do SNS24 — todos eles oferecem estruturas e mecanismos que, apesar de operarem noutros setores, enfrentam desafios semelhantes de negócio, usabilidade ou burocracia.

Até a Skroutz, que não está presente em Portugal, mas atua num mercado socioeconómico parecido, pode ser uma referência útil. Porque mais do que olhar para o “Surface” do produto, eu observo como o sistema está montado: quais as restrições legais, operacionais, sociais ou económicas, e de que forma respondem a necessidades reais.

Draft de fluxos e jornadas de utilizadores

Foco em fluxos e jornadas de utilizadores — mesmo em contextos muito diferentes. O que me interessa é perceber como os utilizadores navegam entre etapas, que obstáculos enfrentam, como interagem com sistemas e que soluções os ajudam a avançar. Não importa se se trata de reservar um voo, comprar um móvel ou marcar uma consulta: há padrões de fricção, decisão e expectativa que se repetem.

Design messy é isso: sair do óbvio, identificar padrões úteis em contextos inesperados, e transformar a desordem em ferramenta criativa e estratégica.

uiux.pt: Como é que a tua experiência pessoal com neurodivergência influenciou a forma como pensas e praticas UX design?

Gustavo Brado: A minha experiência com neurodivergência — mais concretamente com dislexia — teve um impacto profundo na forma como pratico UX. Durante muito tempo, encarei a dislexia como um obstáculo — inclusive muito antes de ser designer. Na infância, já sentia que a minha forma de pensar era diferente, mais dispersa e muitas vezes mal compreendida. Via a dislexia como um problema que era preciso corrigir e tentava disfarçar e compensar de alguma forma.

Só há poucos anos é que me deparei com um artigo de Gil Gershoni e, ao descobrir o conceito de Dyslexic Design Thinking, percebi que essa forma de pensar — tão sensorial, relacional e multifocal — era, afinal, uma força. Ele ajudou-me a reconhecer que o pensamento disléxico tem um valor estratégico no design: permite-nos ver o sistema completo, identificar camadas de complexidade e aproximar-nos da experiência humana com mais profundidade.

Essa consciência não só reforçou a minha confiança como designer, como também deu mais estrutura ao meu próprio método — o design messy. Hoje, utilizo essa visão para compreender contextos mais amplos: não apenas o utilizador, mas também as limitações técnicas, o impacto nos negócios, os sistemas internos e externos. Posso ser mais assertivo nas perguntas porque vejo mais ligações. E uso ferramentas como os blueprints para mapear tudo isso — transformando o pensamento caótico em algo tangível, colaborativo e com impacto.

A neurodivergência não está só no que penso, mas na forma como ligo tudo. E isso tornou-se central na maneira como desenho experiências.

uiux.pt: Que papel imaginas que a IA pode ter na promoção de acessibilidade e inclusão?

Gustavo Brado: Vejo a IA como uma extensão da empatia, se for bem treinada. Pode ajudar-nos a perceber necessidades que nem sempre são visíveis, a adaptar experiências em tempo real a diferentes capacidades, ritmos e formas de pensar. Mas para isso, a IA tem de ser alimentada por diversidade, por dados que representem todos. Imagino que o futuro da IA, não pode passar apenas por traduzir texto em voz, mas que antecipa frustrações, oferece alternativas e com capacidade de transformar aquilo que muitas vezes é visto como uma limitação num motor criativo.

Por exemplo, imagina uma pessoa em cadeira de rodas a usar o Google Maps. Uma IA verdadeiramente inclusiva não se limita a mostrar o caminho “mais rápido”. Ela compreende que rapidez, neste caso, não é apenas uma questão de distância — é uma questão de acesso. Por isso, propõe rotas com menor inclinação, sugere percursos com elevadores funcionais, transportes adaptados e passadeiras rebaixadas. E ao fazê-lo, garante que chegar ao destino — que é o direito fundamental de qualquer experiência. Neste cenário, a diferença não é um detalhe técnico a ser “resolvido”. É uma lente através da qual repensamos todo o sistema. E isso é profundamente criativo.

O que ainda está em falta no Google Maps (e seria transformador):

  • Rotas personalizadas com base no grau de inclinação das ruas.
  • Sinalização automática de elevadores avariados ou caminhos obstruídos.
  • Sugestões de transportes adaptados ou alternativas de mobilidade on-demand.
  • IA preditiva que adapte a rota com base no histórico do utilizador (por exemplo, se evita escadas ou demora mais tempo em certos percursos).

uiux.pt: Qual é o maior ‘mito’ que gostarias de desconstruir no mundo do design de experiências — especialmente no que toca a ordem, regras, guidelines e alta performance e produtividade?

Gustavo Brado: O mito que mais me inquieta hoje é o de que ser eficiente e cumprir processos com precisão é sinónimo de bom design. Esse mito é mais subtil, mas está em todo o lado: quando empresas terceirizam o pensamento estratégico para frameworks; quando equipas usam IA para gerar entregáveis sem questionar as premissas; quando a liderança confunde agilidade com valor.

O verdadeiro risco já não é só o da rigidez — é o da automatização do pensamento. Design que impressiona na forma, mas falha no impacto. Processos que correm “redondos”, mas não resolvem nada. E uma área que parece mais preocupada em parecer estratégica do que em realmente ser.

Sim, a IA pode ser uma aliada. Sim, o método ajuda a organizar. Mas nenhum algoritmo resolve um problema que não tivemos coragem de encarar. UX continua a ser, para mim, uma postura crítica. Uma forma de pensar, de provocar. De navegar a ambiguidade, não de a evitar.

Vejo, cada vez mais, um UX que se tornou checklist: persona criada, jornada mapeada, mapa de empatia colado na parede, protótipo aprovado, teste rodado — tudo certinho, mas o problema real permanece intacto. O cliente continua a sentir atrito, a equipa esgota-se em vez de se sentir realizada, e a apresentação está linda, mesmo que vazia de impacto. Automatizámos até a parte mais importante: pensar.

Mas talvez aí esteja também a oportunidade. Se conseguimos hoje resolver tarefas repetitivas com mais rapidez graças à IA e aos processos, isso deveria libertar-nos — não para correr ainda mais, mas para pensar melhor. Para dedicar tempo a colocar as perguntas certas, criar testes mais profundos e explorar caminhos mais relevantes. A estrutura está aí. A eficiência conquistada pode ser o que nos permite desacelerar no momento certo — e fazer, finalmente, o trabalho que importa.

Por isso, o maior mito que quero desconstruir é o de que precisamos de acelerar tudo para chegar mais longe. Às vezes, o verdadeiro progresso vem de abrandar — para ouvir melhor, questionar com mais profundidade e desenhar com mais sentido.

uiux.pt: Podes contar-nos sobre alguma iniciativa em que estejas a trabalhar agora?

Gustavo Brado: Sim — estou a explorar o Inclusive UX Lab GPT, uma ideia de assistente baseado em IA focado em acessibilidade e inclusão no design. A ambição é que este GPT funcione como um parceiro crítico para designers, PMs ou até entidades públicas, ajudando a identificar e resolver barreiras em experiências digitais.

Neste momento, estou a recolher insights através de um formulário para perceber o que seria mais útil num assistente como este: que tipo de respostas, alertas ou sugestões fariam realmente a diferença para quem projeta — ou usa — produtos digitais de forma diversa.


João Lima

→ UX Design Guru at Critical TechWorks - BMW Group → uiux.pt Founder → UX Teacher

Leave a Reply